Novembro Negro é período para reflexão e fortalecimento da luta antirracista

19/11/2020

As celebrações relativas ao mês da Consciência Negra estão menos festivas neste ano. Os resultados do avanço da pandemia e suas drásticas consequências, especialmente, para a população negra mais vulnerável, exigem dos movimentos organizados ações de intensificação de lutas e ampliação das frentes de resistência contra o genocídio legitimado por um governo que negligencia sua atuação, quando não toma atitudes perversas contra a população pobre em geral.

Entre os países mais atingidos pelo novo coronavírus, o Brasil já supera a marca de 165 mil mortes. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto 10 pessoas brancas morrem pela contaminação, o número de mortos entre pretos e pardos soma 14.

Por que a COVID-19 é mais mortal para a população negra? Essa pergunta é o título do artigo escrito pela professora do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Edna Araújo, em conjunto com Kia Caldwell, professora da Universidade da Carolina do Norte/EUA. Juntas, as autoras trazem dados comparativos entre o Brasil e os Estados Unidos para mostrar os impactos causados pela pandemia em dois países que estão entre os mais atingidos por mortes e ainda têm em comum o fato de serem duas sociedades marcadas pelo racismo estrutural.
Outra triste comparação entre os dois, é o fato de serem presididos por lideranças que negam os efeitos da pandemia e por meio de mentiras, negação da ciência e redução de investimentos para lidar com a crise, empurram a população para números ainda mais estarrecedores. Os Eua já ultrapassaram a marca de 240 mil mortos.

Os efeitos do racismo institucional na saúde da população negra já vem sendo denunciado há décadas por ativistas e intelectuais negros/as, é o que explica em detalhes Araújo e Caldwell, ao mostrar que as taxas mais altas de doenças crônicas como pressão alta, colesterol, diabetes, estresse, problemas renais acometidos por insegurança alimentar, entre outros, são doenças que mais afetam pessoas negras em razão do racismo sobre os seus corpos. Além disso, o alto índice de estresse e aumento de taxas hormonais podem comprometer a imunidade do corpo, deixando-o mais suscetíveis ao acometimento de doenças que podem avançar rapidamente para um quadro de letalidade.

Voltando à Covid-19, a forma como o governo negligencia os dados da doença, sem divulgar os números referentes à raça/cor revelam mais uma face racista da gestão que contribui para a operacionalidade do racismo estrutural, provocando ainda mais vítimas.

A professora Edna Araújo reitera que a compreensão de que brancos e negros estão em condições diferentes de vida só foi possível por meio de apresentação de números concretos, desagregados por categoria. O que significa que a compreensão da estrutura social só é possível a partir da publicação e análises qualificadas dos dados sobre raça/cor; de outra forma não seria possível conhecer as reais condições de uma população em uma sociedade comprovadamente racista como a que vivemos. Na contramão do conhecimento, o governo federal omite esses números classificados e colabora com o racismo. “É assim que o governo pratica racismo por meio das instituições, no momento que não dá visibilidade a dados nos seus sistemas de informação que possibilitem o conhecimento não somente da Covid-19, mas de outros agravos e doenças que acometem a população brasileira”, afirmou.

Em conjunto com a negligência de dados, o sucateamento das instituições torna o quadro ainda mais grave. A professora Edna Araújo destaca que 67% da população negra brasileira é provida de assistência saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “No momento em que o Estado não se preocupa em fazer com que as instituições públicas funcionem de forma a serem eficientes na prestação de serviços a essas populações em situação de vulnerabilidade, o efeito vai ser letal. O efeito não somente da pandemia”, enfatizou.

A desatenção do estado submete a população negra a diversos tipos de violência. Sendo a física, a principal delas. Segundo os dados do Atlas da Violência divulgados em agosto, em dez anos, entre 2008 e 2018, a taxa de violência entre negros saltou de 34 para 37,8 a cada 100 mil habitantes. Enquanto o índice de assassinato cresceu 11,5% entre negros, caiu 12,9% entre os não-negros. O que nos remete diretamente ao questionamento: Como é possível que o mesmo Estado que colabora com a redução de assassinatos em um grupo específico, corrobore com o aumento do número em outro, tendo em vista que ambos convivem na mesma sociedade? A única resposta possível é a confirmação da institucionalização do racismo. Entre as mulheres, a lógica mais uma vez se confirma. No mesmo período, o número de mortes de mulheres não-negras caiu 11,7, enquanto o de negras aumentou 12,4%.

Além da mortalidade provocada diretamente pela Covid-19, a crise econômica que se intensificou em decorrência do avanço da pandemia tem provocado muito mais vítimas. Ainda segundo o IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a taxa de desocupação entre os pretos no período inicial de isolamento foi 71,2% maior que a dos brancos, elevando a taxa de desemprego que era de 15,2% para 17,8%. Entre os brancos, o número saiu de 9,8% para 10,4% mostrando um aumento discreto. O número de desempregados está em aceleração entre as mulheres e os negros, o que nos permite presumir que entre as mulheres negras a taxa deve ser ainda maior. 

Mulheres negras e o racismo

Os números apresentados pela última Síntese dos Indicadores Sociais, do IBGE, mostram que a realidade das mulheres negras no país é grave. No Brasil 63% das casas chefiadas por mulheres negras, com filhos de até 14 anos, estão abaixo da linha da pobreza, com renda per capita de aproximadamente R$ 420. A taxa média de pessoas em geral na mesma condição é de 25%.

Em 41,8% dos lares chefiados por mulheres negras chefes de família, o índice relativo a saneamento básico é ainda pior pois não contam com água encanada, esgotamento sanitário e coleta de lixo. O grau de insegurança alimentar que vinha caindo nos últimos anos nos lares brasileiros, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, teve um aumento de 37% e as casas chefiadas por homens negros e mulheres negras são os mais atingidos. Entre aqueles/as com menor escolaridade, os índices pioram, mas se engana quem acredita que a qualificação acaba com o racismo cotidiano.

A professora do Departamento de Ciências Exatas da UEFS, Gracinete Souza, conta sobre sua trajetória marcada pelo racismo mesmo no Ensino Superior, após aprovação através de concurso e em espaços de militância. Desde a graduação, também pela UEFS, até o doutorado, a professora afirma ter enfrentado o racismo. Além disso, percebe essas situações, mesmo na sua atuação docente, que entre as mulheres são agravadas por conta do machismo: “O machismo e o racismo são violências. Quando você enquadrar o machismo e o racismo como violências, talvez perceba o tanto que você é violento com as pessoas. Infelizmente a universidade ainda é uma instituição de brancos; o Andes tem os dados coletados de que a universidade tem uma maioria de mulheres brancas. A docência é uma profissão feminina, formada por pessoas brancas que insistem em continuar reproduzindo o racismo. É uma pena que isso aconteça. Meu currículo sempre é contestado dentro da universidade”, afirma.

Com pesquisas realizadas sobre o município de Feira de Santana, Gracinete Souza relata que percebe que enfrenta discriminação também quando não é chamada para as mesas onde o tema é discutido: “Desde a década de 90 eu estudo sobre Feira de Santana. Às vezes, têm várias mesas sobre Feira de Santana e eu não sou chamada. É muito frustrante [...] Cheguei a achar que dentro da universidade eu não sofreria racismo, mas, infelizmente, não é isso que acontece”, relata a professora que disse perceber o racismo também nos espaços de militância através da invisibilização do seu nome.

Como a invisibilidade não se dá por total ausência, esse processo nem sempre ocorre por meio de silêncios, o próprio ato de descredibilizar, deslegitimar, depreciar são ações concretas que operam para o apagamento de corpos e silenciamento de vozes e devem ser comportamentos fortemente combatidos em quaisquer espaços sociais e por quaisquer indivíduos que, independente da cor, desejem fomentar uma sociedade antirracista e pautada em valores democráticos.
  

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