Entrevista: Sobretaxa de Trump, ofensiva imperialista e soberania nacional

08/08/2025

O governo dos Estados Unidos, sob a liderança de Donald Trump, anunciou a aplicação de uma sobretaxa de 40% sobre os produtos brasileiros exportados ao país, que já estavam sujeitos a uma tarifa de 10%. Com isso, o total da tarifa chega a 50% e entrará em vigor a partir de quarta-feira (6). Embora o governo estadunidense tenha recuado parcialmente em relação ao anúncio feito em junho — retirando 694 itens da lista, como petróleo, suco de laranja, minérios e aeronaves —, a medida é vista como parte de uma ofensiva mais ampla, de caráter imperialista, contra o Brasil e sua soberania.

A sobretaxa foi acompanhada por uma série de ações e declarações que colocam em xeque o respeito dos Estados Unidos (EUA) à democracia e ao Estado de Direito no Brasil. Entre elas, estão acusações infundadas de ataques à liberdade de expressão, utilizadas como pretexto para proteger os interesses das big techs* norte-americanas, interferências no processo judicial contra Jair Bolsonaro pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 e suspeitas de um ataque especulativo ao Real, que teria gerado lucros bilionários a grupos com acesso privilegiado a informações.

Segundo comunicado da Casa Branca, a medida seria uma resposta a ações do governo brasileiro que, na avaliação dos EUA, representam uma “ameaça incomum e extraordinária” à segurança nacional, à política externa e à economia norte-americana.

Diante desse cenário, manifestações contra o tarifaço e a ofensiva imperialista vêm sendo organizadas em várias partes do país. Na última sexta-feira (1º), ocorreram atos em locais públicos e em frente a representações diplomáticas dos Estados Unidos.

Para analisar esse contexto e refletir sobre os caminhos da luta sindical e popular diante dessa conjuntura, Marcos Soares, 1º vice-presidente da Regional São Paulo e encarregado de Relações Sindicais do ANDES-SN, deu uma entrevista ao site do Sindicato Nacional.

ANDES-SN: Quais os impactos econômicos e sociais da sobretaxa para os trabalhadores e as trabalhadoras brasileiras, especialmente nos setores mais afetados pela exportação?

Marcos Soares: Agora que o tarifaço, ou a sobretaxa, foi anunciada, alguns itens e setores foram mais afetados, outros menos, mas, de forma geral, não houve muita mudança em relação ao que havia sido anunciado previamente. Se observarmos as áreas econômicas do Brasil mais impactadas, destacam-se o café, o açúcar (com toda a cadeia da cana-de-açúcar), as carnes e os calçados — setores com forte presença nas exportações brasileiras para os Estados Unidos.

Os representantes e empresários desses setores têm defendido que o governo brasileiro continue tentando negociar com os EUA, buscando reduzir o percentual da sobretaxa ou até conseguir isenções, como ocorreu com outros setores. Além da via diplomática e política, alguns também têm cobrado que o governo adote uma política de apoio financeiro, nos moldes do que foi implementado, ainda que parcialmente, durante a pandemia.

Essa estratégia, no entanto, tem impacto direto na economia brasileira, pois implica a entrada do Estado com recursos, financiamento e apoio aos setores produtivos, em especial ao setor privado. É uma discussão importante, já que envolve grandes segmentos da economia nacional. O impacto imediato, no entanto, recai sobre os trabalhadores. O setor de calçados, por exemplo, já anunciou que, se a sobretaxa for mantida, até 8 mil postos de trabalho poderão ser eliminados.

ANDES-SN: Quais medidas o governo brasileiro deveria adotar diante desta sanção comercial dessa magnitude, imposta unilateralmente pelos EUA?

MS: O governo Lula procurou os empresários para discutir e negociar, demonstrando, assim, um caráter de forte conciliação com esse setor. Ainda que, em essência, esses setores também sejam vítimas de um processo absolutamente arbitrário, por um governo de um país muito rico e poderoso do ponto de vista econômico. No entanto, até o momento, Lula não chamou os trabalhadores para essa discussão, o que considero um problema.

É claro que o governo brasileiro está sob grande pressão, sobretudo porque essas medidas do Trump têm um caráter conspiratório, intervencionista e de aliança com a extrema direita brasileira. Por isso, a discussão no Brasil não é tranquila. Estamos assistindo, por exemplo, ao próprio filho do ex-presidente Bolsonaro, nos Estados Unidos, conspirando contra o Brasil e contra setores que, em tese, até poderiam apoiá-lo politicamente, como o agronegócio. Portanto, esse diálogo interno não é fácil de ser feito no Brasil, mas, seguramente, ele fica mais difícil se não houver um diálogo com as centrais sindicais, os movimentos sociais, enfim, com a classe trabalhadora.

Acredito que uma das medidas que o governo deveria tomar, além das econômicas, que visem mitigar os impactos da sobretaxa e das tarifas, seria abrir um canal de diálogo com o movimento sindical, os trabalhadores e as trabalhadoras e os movimentos sociais em geral. A possibilidade de demissão é latente, porque é a resposta imediata que o capital faz para tentar diminuir o impacto do aumento do custo de produção e impostos. Então, o governo brasileiro precisaria chamar os trabalhadores para discutir essa situação.

ANDES-SN: Antes do anúncio oficial do tarifaço, os EUA vincularam as tarifas a uma suposta “censura” no Brasil e saíram em defesa de Bolsonaro, acusado de tentativa de golpe. De que forma essa postura ameaça a soberania do Judiciário brasileiro e enfraquece nossas instituições democráticas?

MS: O Trump lidera hoje um projeto global da extrema direita, com articulações em países da Europa, Israel, alguns contatos no Oriente Médio e a Argentina, na América Latina — onde se alinha diretamente a figuras como Bolsonaro e sua equipe. O tarifaço anunciado pelos EUA não mira apenas o Brasil, mas aqui teve um tratamento particular: não houve negociação oficial, e a medida veio acompanhada de pressões políticas, como a defesa pública de Bolsonaro e críticas infundadas ao sistema judiciário brasileiro. Trata-se de uma ofensiva em duas frentes — econômica e política — para proteger aliados e interferir em processos internos, como não culpabilizar Bolsonaro por tentativa de golpe. Recentemente, um general chegou a admitir que cogitou o assassinato de Lula, do vice Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, o que revela a gravidade da ameaça à democracia brasileira.

Não haverá um apoio substancial da União Europeia, ou de outros países, muito menos da Rússia ou da China, à ideia de que há uma “caça às bruxas” no Brasil ou de que a Justiça esteja perseguindo Jair Bolsonaro. Até porque, pela lógica da política internacional e da diplomacia, os países costumam evitar interferências diretas nos assuntos internos de outras nações. Isso é, em certa medida, uma regra da diplomacia internacional. Na verdade, o que temos visto é o contrário. No dia 25 de julho, o ANDES-SN esteve presente na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na Universidade de São Paulo (USP), durante o lançamento da campanha Soberania Nacional. Foram mais de 300 entidades, a maioria ligada aos movimentos sociais, à luta por democracia, por direitos humanos, mas, no evento, havia também representantes do empresariado, discutindo que a soberania de um país não se negocia.

Nós, trabalhadoras e trabalhadores organizados, sabemos que o Judiciário no Brasil é muito seletivo. No entanto, na discussão específica que envolve a acusação contra Jair Bolsonaro e sua equipe numa trama golpista, a Justiça está seguindo os ritos legais e as provas estão aí para todos e todas verem. Há uma ameaça à soberania nacional. Por isso, é fundamental que os movimento sociais e os sindicatos estejam atentos e atuem para impedir qualquer manifestação no sentido de dar a um país estrangeiro a outorga de se inserir e fazer algum tipo de ingerência na soberania do nosso país, do ponto de vista das suas instituições, da luta geral e do próprio governo. Soberania não se negocia.

ANDES-SN: A AGU tem apurado possíveis operações no mercado financeiro brasileiro com base em informações privilegiadas, envolvendo lucros com câmbio antes e depois dos anúncios de taxação feitos por Donald Trump. O que essa possível operação especulativa revela sobre os mecanismos de dominação financeira internacional e seus impactos sobre a economia brasileira?

MS: Demonstrou como o sistema financeiro internacional, embora pareça ter regras e uma estrutura formal, é uma grande farsa. No campo da discussão que nos traz István Mészáros, com a incontrolabilidade do capital, mostra que o capital é incontrolável. O Brasil foi o país, até aqui, com a taxação mais alta, de 50%, o que envolve muito dinheiro.

Há uma farsa em termos de controle sobre a lógica do capitalismo em nível mundial e expõe os mecanismos de dominação financeira. Grupos que se beneficiam com informações privilegiadas, com movimentos especulativos que afetam a economia, porque isso significa essa volatilidade de capital, que entra e sai do país a partir dessas informações, desse circuito informativo que acontece entre pessoas que dominam o capital, ligadas a governos, ou diretamente ao capital especulativo, Bolsa de Valores etc.

ANDES-SN: De que forma a política externa dos EUA, marcada pelo unilateralismo e por ações imperialistas, impacta países do Sul Global como o Brasil?

MS: É importante dizer que, desde o final do século XIX, quando os Estados Unidos começam a se consolidar e, principalmente, pós-Segunda Guerra, como a principal potência imperialista do planeta. É importante dizer que a relação com os demais países sempre foi uma relação de dominação, seja ela econômica ou militar. Podemos pegar o exemplo das políticas econômicas lideradas pelo FMI [Fundo Monetário Internacional] para os países da periferia do capital, ou as intervenções militares, como no Iraque, no Afeganistão e em outros países.

O unilateralismo é uma marca deste atual momento dos Estados Unidos, ou seja, um país que vai se dirigindo aos demais de forma quase que individual, não por blocos. Um ponto interessante é que, mesmo em relação aos seus grandes parceiros europeus, já há divergências públicas. Essas divergências já existiam, mas eram tratadas de forma mais velada. Agora, são abertamente expostas, inclusive no que diz respeito aos gastos militares.

Me parece que o unilateralismo é uma resposta a essa conjuntura marcada por um tipo de governo de extrema direita, com traços até protofascistas. No campo econômico, essa postura se expressa por meio de pressões feitas a países de forma isolada, o que, na prática, aumenta ainda mais essa pressão. Uma coisa é pressionar um bloco como o Mercosul, outra é pressionar individualmente países como Argentina, Brasil, Venezuela e México. A saída, do ponto de vista da soberania dos países, seria buscar a unificação dessas economias.

Nós temos os Brics**, que ampliaram sua participação com a entrada de novos países como membros e parceiros. Alguns analistas dizem que essa ação dos Estados Unidos tem a ver, inclusive, com a expansão dos Brics. Ou seja, seria uma forma protecionista de se proteger economicamente.

O grande problema da América Latina é que não há uma certa unidade, mesmo nos governos ditos progressistas. Atualmente, temos governos assim no Chile, na Colômbia e no Brasil, mas já houve outro momento na América Latina em que mais países tinham governos chamados progressistas e, ainda assim, não buscaram uma linha política e econômica que lhes garantisse alguma segurança frente às políticas expansionistas do imperialismo estadunidense, como ocorre agora.

Ao mesmo tempo, outros analistas apontam que esse impacto pode abrir outros caminhos para exportações que antes eram minoritárias, voltadas a outros países. O Brasil, por exemplo, anunciou que muitos empresários estão procurando mercados, como o mexicano, para comercializar seus produtos.

ANDES-SN: Como as trabalhadoras, os trabalhadores, os movimentos sociais e entidades como o Sindicato Nacional podem se posicionar diante dessas ofensivas econômicas e políticas? E por que é fundamental que entidades sindicais e populares se manifestem contra as medidas que ferem a soberania nacional e favorecem o capital internacional?

MS: Do ponto de vista político, trata-se de defender a soberania nacional. Estamos assistindo uma aliança da extrema direita dos Estados Unidos, com Donald Trump como liderança global desse campo, em conluio com a extrema direita brasileira. É essa mesma extrema direita brasileira que colocou o boné da campanha do Trump “Fazer a América grande novamente”. América, aqui, entendida como Estados Unidos. E agora, parte dessa direita, como os governadores de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, tem se posicionado a favor de Trump, se colocando, inclusive, em situações delicadas, como no caso de São Paulo, onde o agronegócio pode ser impactado em grande medida pelos tarifaços. Isso gerou questionamentos ao governador [Tarcísio de Freitas (Republicanos)], eleito com o apoio desse setor, a respeito de qual lado ele está.

Temos ainda um parlamentar em licença, nos Estados Unidos, o filho de Jair Bolsonaro [Eduardo], que atua como um embaixador da extrema direita brasileira e que, junto a Donald Trump, ataca a soberania brasileira.

É uma prova cabal de que a pecha de “patriotas” não cabe a essas pessoas, porque estão defendendo interesses de um país estrangeiro em detrimento dos do Brasil. É um conluio entre a extrema direita brasileira e estadunidense. Então, do ponto de vista político, os movimentos sociais devem denunciar essa aliança e defender a soberania nacional.

Do ponto de vista da classe, nós, trabalhadores e trabalhadoras, temos que nos posicionar em defesa dos empregos e da economia nacional. Ou seja, se o tarifaço gerar desemprego, é preciso pressionar empresas e governos a criarem novos postos de trabalho, que substituam aqueles eventualmente perdidos em função dessas políticas, responsabilizando o governo dos Estados Unidos, Donald Trump e os seus aliados no Brasil. Além da soberania nacional, a campanha deve focar na defesa do emprego para todos e todas.

ANDES-SN: O pretexto de “ataque à liberdade de expressão” tem sido utilizado para justificar a resistência das big techs norte-americanas à regulação de suas atividades no Brasil. Como esse discurso vem sendo manipulado por grandes corporações para evitar o cumprimento das leis brasileiras e a atuação do Estado?

MS: Liberdade de expressão é um termo que, no capitalismo, é um conceito polissêmico, porque envolve certos limites daquilo que se fala e daquilo que se faz. No caso das big techs, mas sem entrar muito nessa discussão, trata-se de um tema relativamente novo, tanto no Brasil quanto no mundo, e ainda é difícil consolidar uma compreensão clara na opinião pública. De modo geral, penso que a população tende a acreditar que tudo se enquadra como liberdade de expressão. E isso atrapalha o debate sobre a regulação das big techs.

O discurso mais fácil, quando se fala em regulação, é o da censura. Mas há diferença entre regular e censurar. Eu penso que a regulação seja necessária. Se pegarmos, por exemplo, o processo eleitoral, essas grandes empresas tiveram um papel preponderante no pleito que elegeu Jair Bolsonaro, divulgando informações falsas, muitas delas mentirosas.

De qualquer jeito, a legislação brasileira e o próprio debate público vêm sendo alvo de tentativa de desmoralização por parte da extrema direita, que tenta deslegitimar instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), como se o Judiciário fosse um poder autoritário, que quer controlar o país e se sobrepor aos demais poderes.

A ideia, amplamente veiculada na mídia, de que essas plataformas apenas permitem a comunicação entre pessoas e não têm controle sobre o que se fala ou escreve, não corresponde à realidade. Quem produz um instrumento de comunicação controla esse instrumento, seja diretamente ou por meio de algoritmos. Essas plataformas muitas vezes direcionam os usuários a determinados conteúdos ou opiniões, moldando percepções e comportamentos. Portanto, é necessário conquistar a opinião pública para entender que a chamada liberdade de expressão precisa, hoje, ter limites. Liberdade de expressão é uma coisa. Preconceito, mentira e fake news são outra.

É fundamental construir um debate nacional sobre a regulação dessas grandes empresas de tecnologia e pensar uma legislação brasileira que o faça sem cair na censura. Porque nosso país viveu uma ditadura de 21 anos, e os legisladores se acostumaram a censurar. Mas, no caso das fakes news , regular não seria censura.

Apostar todas as fichas apenas na via judicial, entretanto, me parece temerário. Os movimentos sociais e sindicais precisam assumir esse debate, com suas bases, sobre a necessidade de se estabelecer critérios para a atuação dessas empresas. É fundamental construir coletivamente uma compreensão sólida sobre o que é regulação e o que é censura. E, sobretudo, saber diferenciar uma coisa da outra.
 

*Big techs, ou gigantes de tecnologia, são as grandes empresas que exercem domínio no mercado de tecnologia e inovação, como Apple, Google, Amazon, Microsoft e Meta.
**Composto por onze países - Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã -, o Brics atua como um fórum de articulação político-diplomática entre nações do Sul Global, promovendo a cooperação em diversas áreas.

FONTE: ANDES-SN

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