Paulo Freire, Presente e Urgente!
23/09/2021
No último dia 19 de setembro, celebramos o
centenário do educador pernambucano Paulo Freire. Dentre as muitas
possibilidades de abordagem que podem ser feitas tomando como base a vasta obra
de Freire, escolhemos refletir sobre o atual contexto político, social e
econômico brasileiro para mais uma vez reforçar a importância e imortalidade do
seu legado, apesar dos recorrentes ataques promovidos por aqueles/as que
desconhecem sua obra e não reconhecem a importância de uma educação libertária
e emancipatória como forma de redução das desigualdades. Para nos auxiliar
nesta reflexão, convidamos a professora Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante,
graduada em em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia, mestre em
Sociologia pela University of London e doutora em Educação pela Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia. É professora titular da Universidade Estadual de Feira de
Santana desde 1998 e docente permanente do Programa de Pós Graduação em
Educação (PPGE/UEFS). Tem vasta experiência na área de Educação do Campo,
Ambiental e Popular.
Quais elementos a senhora destaca como
centrais no pensamento e método de Paulo Freire?
Muitos autores dialogaram, debateram,
criticaram, ovacionaram sua obra, mas dificilmente refutaram a sua relevância
no cenário educacional do século XX e XXI. Moacir Gadotti costuma dizer que
Paulo Freire deu visibilidade ao oprimido no debate educacional, "colocou o
oprimido na história" na
busca por tomada da consciência das suas condições de vida e ativação da possibilidade
de lutar contra estas condições. Conhecido como "um marxista que lia o evangelho", sua
contribuição, certamente está para além de um método: promove uma leitura de
mundo, situa a educação no território político, coloca a "conscientização" como pilar da sua obra, e
luta pela transformação na e da sociedade desigual.
Paulo Freire, foi um teórico que pensou a educação a partir do
desejo de se pensar a relação com o outro sob a lógica libertária. Se a
educação é exercida na relação com o outro, Freire nos imputa a necessidade de
qualificar esta relação, a partir de conceitos clássicos na sua obra como
"dialogia", "emancipação", "transformação social", "educação para a liberdade"
e "consciência" do/no mundo. Sua pedagogia usa da problematização, esta por sua
vez (no tempo dos sujeitos e dos processos), busca a conscientização e a partir
da conscientização a possibilidade da ação social e política na sociedade. Sua
pedagogia é militante e sua militância é a favor da classe trabalhadora. Sua
pedagogia é do oprimido e não para o oprimido e muito menos do
opressor. É uma pedagogia da dialogia, ao tempo da reflexão, mas não
usa de subterfúgios para se posicionar na sociedade.
Para o autor, a educação é um processo de
interlocução e neste processo, o reconhecimento do outro ao tempo que o
reconhecimento do que há de nós mesmos no outro, como "restauradores da
humanidade em, ambos", é uma busca incessante. Sua pedagogia nos convida a
pensar esta relação a partir de uma perspectiva crítica, humanizadora, sensível
e acima de tudo política, e como afirma em Pedagogia do Oprimido, "a grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos é libertar-se a si e aos opressores".
Os estudos de Freire questionam a
intencionalidade pedagógica presente nos processos de escolarização das classes
populares, estas pessoas que são convencidas pela hegemonia da sua
"incapacidade intelectual" de aprender, quando na verdade a elas foi negada a
condição do aprendizado, demarcado por um histórico de exclusão social e
educacional, que muitas vezes é perversamente naturalizado. Freire
historicizava esta condição de opressão, não a naturalizava, refletia com as
pessoas, ajudava-as a pensar sobre esta história de desumanização. O autor
advogou por uma educação que jamais permitiria a neutralidade como
possibilidade de expressão. Para o autor "Além de um ato de
conhecimento, a educação é também um ato político. É por isso que não há
pedagogia neutra."
Na perspectiva freireana somos "seres
inacabados e isto significa inconclusos, em e com uma realidade, que sendo
histórica também, é igualmente inacabada", isto é importante para
ressignificarmos nossa ação pedagógica, pensando-a como processo e
circunstância, como ação politizadora no mundo e comprometida com as causas
sociais e amadurecidas num processo de autoformação, que é enriquecido na
formação com o outro.
Apesar de mundialmente conhecido e defendido,
no Brasil ainda há muita resistência em relação à perspectiva de educação
defendida por Freire. Por que o seu modelo de emancipação dos sujeitos
permanece sendo temido?
O autor teve fortes influências em diferentes
cantos do mundo ao compartilhar das suas ideias, experiências e teoria
pedagógica no século XX. Sua contribuição para o pensamento crítico educacional
é resultado de experiências práticas e efetivas no processo de aquisição da
leitura e da escrita e o que mais surpreende é exatamente o potencial técnico
de apropriação da escrita, a partir do potencial político de apropriação da
reflexão, sobre as condições de existência dos seres humanos em sociedade. A
leitura do mundo é a leitura da realidade e obviamente que esta perspectiva
pode nos levar a constatações de indignação na sociedade capitalista.
A experiência de alfabetização junto à 300 trabalhadores em 40 dias, na pequena
cidade de Angicos,
no interior Rio Grande do Norte em 1963, foi uma demonstração da força
da sua pedagogia na relação teoria e prática. Levando em conta que o processo
de alfabetização tinha como ponto de partida a análise e reconhecimento das
condições de vida e trabalho das pessoas, a pedagogia freireana, mostrava como
era importante buscar a sintonia entre a técnica e a política nos processos de
formação de adultos trabalhadores. Isto foi muito revolucionário na medida em
que as pessoas eram consideradas capazes de refletir sobre o mundo e tecer
elaborações em torno das suas condições de existência ao tempo que aprendiam a
ler e escrever. Imagine o quanto arrebatador para agricultores, lavadeiras,
diaristas, pedreiros, donas de casa, motoristas... juntos, discutindo suas
vidas em coletivos, pensando seus desafios e compartilhando reflexões ao tempo
que aprendiam a sistematizar suas ideias, a organizar seus pensamentos, a
compreender as injustiças que acometeram as suas vidas!
A estes sujeitos, pela experiência da
pedagogia freireana, era dada a oportunidade de reflexão conjunta e do
aprendizado "em comunhão". Isto poderia criar condições de organização social e
política capazes de provocar desconforto na sociedade hegemônica.
Isto poderia criar possibilidades de
insurgências e resistências coletivas que colocam em xeque a zona de conforto
das classes dominantes. Paulo Freire estava a serviço da classe trabalhadora
para, junto com ela, ajudar na compreensão da sua condição de exploração, no
processo de consciência de classe e nas possibilidades de transformação da
sociedade. Sua teoria pedagógica sacudiu de forma única o trabalho com
alfabetização de jovens e adultos na segunda metade do século XX. Isto soava (e
ainda soa!) como inoportuno, perigoso e inapropriado para as classes
hegemônicas e privilegiadas da sociedade capitalista.
Ironicamente muitas foram as tentativas de
"despolitizar" o seu método e "aplicá-lo" em um formato "desideologizado", o
que, contraditoriamente, significaria ideologizar a partir da referência dos
opressores, exatamente por perceberem a eficácia do método de alfabetização,
era necessário tirar a alma da sua teoria pedagógica: a consciência de classe.
Segundo o Ernandes Fiori no prefácio da Pedagogia do Oprimido "As técnicas
do método de alfabetização de Paulo Freire, embora em si valiosas, tomadas
isoladamente não dizem nada do método." Desideologizar a pedagogia
freireana, é, portanto, um equívoco político e pedagógico, político porque se
propõe ideologizar hegemonicamente (uma desonestidade intelectual com o autor),
pedagógico porque tiraria a oportunidade de realmente "educar para a prática da
liberdade". Freire já alertava: "esta pedagogia não pode ser elaborada nem
praticada pelos opressores." (p.26)
A resistência ao trabalho pedagógico de Paulo
Freire reside no fato de que sua abordagem é eficiente no seu propósito de
ensinar a ler, a escrever e a pensar. A leitura vira uma ferramenta elucidativa
da realidade e abre um horizonte reflexivo para quem aprende e para quem ensina
e o resultado disto pode significar um processo consistente e ininterrupto de
inconformação com a realidade posta e a busca por transformação e justiça
social. Uma sociedade que se propõe
emancipada não pode temer a emancipação dos homens e das mulheres que a compõem.
Mas ela teme, exatamente por não ser emancipada e por cultivar a opressão.
A educação como prática libertária é uma das
grandes discussões desenvolvidas por Paulo Freire. Nos moldes da educação
pública, refletindo sobre estrutura, qualificação e acesso, é possível colocar
essas ideias em prática?
Paulo Freire foi um homem de ousadia, autor,
professor, educador popular, gestor, pensador que exercitou a humildade e
concretizou experiências exitosas em situações adversas, ele não temia a
concretude das suas ideias e não fugia da necessidade de rever seus textos e
sua obra ao longo da vida.
É importante conhecermos a experiência
gestora de Paulo Freire enquanto secretário municipal de educação em São Paulo,
na gestão de Luiza Erundina no início da década de 90. Na obra "A Educação na
cidade" encontramos muitos registros de suas reflexões sobre o período de dois
anos na secretaria de educação em São Paulo, uma boa forma de conhecer o seu
trabalho no território da institucionalidade e romper com o estereótipo do
educador da "filantropia social". Como gestor, ele pensou nas estruturas das
instituições escolares, no processo de formação de professores, na escuta aos
profissionais e comunidades, na condição salarial docente, nos desafios das
políticas curriculares e da educação integral, nas contradições do tempo e
ritmo da máquina burocrática, assim como, nos limites que a institucionalidade
impõe. Há bons registros dessa passagem pela gestão e atuação na rede municipal
paulista, inclusive sob a sua própria avaliação.
Mas é bom que se diga que a educação como
prática da liberdade, nunca foi uma defesa do espontaneísmo pedagógico, e
nem da precariedade educacional, ela é uma forma de se pensar a educação como
um direito a formação humanizadora, pautada na história, na cultura e na busca
por condições dignas de vida. Uma instituição que estudar Freire, ou um
educador que colocá-lo como referência teórico metodológica no seu projeto
político pedagógico, tem grandes chances de realizar um trabalho primoroso,
levando em consideração seus princípios pedagógicos educacionais que buscam a
consistência, curiosidade científica, escuta, dialogia, afetuosidade, rigor
acadêmico e compromisso social. Isto requer intencionalidade política e
formação continuada.
No livro "Medo e Ousadia, o cotidiano do
professor" o autor conversa com o Ira Shor (teórico americano), sobre
inquietações da educação libertadora em espaços escolares e destaco um trecho
que gosto muito:
"Por um lado, não posso ser autoritário.
Por outro lado, não posso cair no laissez-faire. Tenho que ser radicalmente
democrático, responsável e diretivo. Não diretivo dos estudantes, mas diretivo
do processo no qual os estudantes estão comigo. Enquanto dirigente
do processo, o professor libertador não está fazendo alguma coisa aos
estudantes, mas com os estudantes. O que penso, é que essas mudanças
geralmente ocorrem na história de muitos de nós, professores. Não quer
dizer que todo mundo deva ter a mesma experiência. Mas, algumas vezes, é um
longo processo através do qual aprendemos muito." (p.34). Freire não traz
uma receita de ensino, mas antes alerta para a necessidade do deslocamento dos
vícios pedagógicos e convida para se pensar uma outra cultura educacional. A
pedagogia em Freire, é conhecimento teórico e possibilidade prática.
O Movimento Nacional em Direitos Humanos teve
pedido na justiça acolhido para impedir que a União atente contra a dignidade
do Professor Paulo Freire, o que isso nos diz sobre as ideias do governo
federal?
Tenho discutido muito no processo de formação
inicial e continuada de professores sobre os desafios nas buscas por
estratégias possíveis de enfrentamento ao problema da negação da ciência
vivenciada na sociedade atual, e que de certa forma precisa ser trabalhada nos
espaços educacionais, de atuação docente. É uma demanda educacional nossa, como
professores, discutir as razões, as implicações e as possíveis estratégias de
combate à desinformação da população, que de forma muito crucial,
impacta o nosso trabalho e a nossa sociedade como um todo. Acredito que para
além do governo federal, há uma parcela na sociedade, que reflete e se vê
refletida nas lentes do obscurantismo, isto é devastador e precisamos
compreender o nosso papel diante deste cenário!
Por tudo isto, Freire está cada vez mais
atual nas nossas leituras sobre o Brasil e seus desafios na sociedade pautada
na desigualdade social e nas relações de opressão estabelecidas, agora
intensamente permeada por processos obscuros de desinformação e deformação
política. Ironicamente quando mais precisamos de Paulo Freire, mais percebemos
como sua obra tem sido vilipendiada, por camadas da sociedade que pouco leram
ou até nem leram a sua obra, mas já avançam nos julgamentos! O legado de Paulo
Freire é reconhecido mundialmente, mas no Brasil é desmerecido por ignorância
ou por má fé. Para conhecer a obra de Freire, é preciso ler seus livros e
entender a sua obra, e aí recai o desafio atual da leitura do mundo sob a
lente da humanização.
Temos visto um governo federal que refuta a
ciência, desqualifica as instituições educacionais, seus profissionais, seu
legado na sociedade. Experimentamos a gestão da perversidade e da indiferença,
do descaso e do obscurantismo, do cinismo e do deboche. O país vive um luto
social e uma tristeza física (social, ambiental, sanitária, cultural...)
agravada pela pandemia do coronavírus e pela cumplicidade de uma sociedade
indiferente. É um desafio cotidiano para nós, pensar nas possibilidades de
enfrentamento e superações das dores atuais. As dores do mundo respingam no exercício
do nosso trabalho como educadores.
Paulo Freire produziu sua obra mais famosa
nos tempos de um Brasil opressivo! Foi sob o espírito da coerção que o autor
pensou em educar para libertar e para emancipar a si e ao outro. Talvez aí
resida o medo de Paulo Freire. Ele, altivo, revolucionou o pensamento
educacional, rodou o mundo e retornou a tempo de ajudar na reconstrução de um
país democrático e desejoso de viver melhor em sociedade.
Precisamos resgatar a postura freireana para
pensar, propor, ousar, dialogar, organizar, se juntar e resistir. Freire não
trabalhava sozinho, seus companheiros sempre faziam questão de reafirmar seu
espírito generoso, amoroso e coletivo. Freire enfrentou as mazelas do seu tempo
com coragem, sabedoria, paciência e discernimento. Desconcertava os opressores e amparava os oprimidos. O Brasil atual precisa ser sacudido, reconfigurado e
revisto. Paulo Freire é uma grande inspiração neste momento! Paulo Freire,
presente!