Na série de entrevistas para o Julho das Pretas, a Adufs conversou com a professora Sandra Nivia Soares que é docente do Departamento de Educação (DEDU/UEFS), integrante do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe, Etnicorracial, Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) e coordenadora do Prêmio Alfagaris que, neste ano, venceu a 4ª edição do Prêmio LED, entre mais de duas mil iniciativas inscritas. O Projeto atua na alfabetização de agentes de limpeza de Feira de Santana.
A professora Sandra Nivia relatou que nunca foi vítima de racismo diretamente, mas sempre esteve presente no seu cotidiano: “Eu nunca sofri racismo direto sendo professora, nem na escola básica, nem no ensino superior, embora em alguns momentos ele tenha aparecido de forma velada. Mas o racismo sempre atravessou a minha docência. Sempre trabalhei na escola pública, na universidade pública. E, principalmente a escola básica pública, que é a escola dos pobres, e pobreza no Brasil tem cor, me colocou os maiores desafios”.
Atuando na docência desde a década de 80, quando a maioria das legislações ainda não haviam sido implementadas, Sandra Nivia destacou como a experiência diária contribuiu para o seu entendimento acerca da sua identidade, do racismo e suas implicações: “Sou professora desde 1985, antes das políticas afirmativas, antes da constituição dita cidadã, antes da LDB, e depois dela acompanhei a lentidão de sua implementação, a negação de direitos escritos na Lei. Trabalhar numa escola e acompanhar histórias de jovens e crianças, em sua maioria negras, com fome, sem sapato, sem roupas, abandonando a escola para ajudar a comprar comida, morrendo violentamente. Fui descobrindo em meio a esta experiência os efeitos do racismo, como ele estrutura as relações, define lugares, define quem pode e quem não pode estudar e até quem vai viver e morrer, como viver, como morrer. Fui observando que eram sempre os mesmos: negros (pretos e pardos), como eu, e assim fui também descobrindo que sou negra".
Através das palavras da intelectual negra e ativista Lélia Gonzalez, ela enfatizou como a assunção da sua identidade contribuiu positivamente na sua organização política: “Em 1988, Lélia Gonzalez disse “a gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora”. Mas também é libertador e organizador das emoções, da raiva, do medo, do amor. O grande desafio foi transformar o ódio em indignação. Porque a indignação gera uma política e organiza a luta. Hoje sigo fazendo o de sempre lutando por justiça social, por uma sociedade livre de todo os preconceitos”
Apesar dos avanços que são decorrentes de lutas coletivas, a docente reconhece que ainda há muito a ser feito para que seja alcançado um cenário efetivo de transformação social que só pode ser conquistado por meio de lutas: “Já avançamos. E avançamos porque muita gente lutou, adoeceu, morreu para que nós usufruíssemos de cenários menos violentos. Por isso entendo que continuar luta não é uma escolha. A escolha só pode se dar na estratégia”
Os espaços conquistados mostram o aumento da representatividade, mas ainda são insuficientes, mesmo com a ascensão de mulheres negras, da classe trabalhadora, como ela se define. Isso porque a violência segue sendo a tônica das desigualdades: “Os indicadores sociais revelam as desigualdades de gênero e de raça que nos atravessam. Qualquer mulher hoje é violentada. Se ela é pobre esta possibilidade aumenta, se ela é negra mais um acúmulo, negra e pobre, mais violência, negligência, abandono, preconceito, e se é uma mulher pobre, negra, trans e deficiente ela está no pior cenário das violências. Não tenho dúvida que precisamos ter engajamento nas lutas pela justiça social e não há justiça social onde há racismo. O nosso país é muito desigual e em questões que chega a ser vergonhoso como, por exemplo, a existência de pessoas com fome, de analfabetos. Quando você faz o tratamento do dado, lá estão pessoas negras”.
Na sua trajetória, o reconhecimento do trabalho feito a muitas mãos comprovam que a construção de estratégias no combate às desigualdades sociais, que atingem uma maioria absoluta de pessoas negras, é a única alternativa possível. O que não significa que não seja permeado de dilemas: “Recentemente, um Projeto de extensão de nossa universidade ganhou o Prêmio LED da Rede Globo. A premiação do Alfagaris publicizou a qualidade de nosso Projeto e compromisso social da UEFS. Eu como coordenadora não posso dizer que esse reconhecimento não seja importante, mas também não posso deixar de revelar o quanto isto me impôs um dilema: receber um prêmio porque ainda estamos alfabetizando jovens e adultos. Mas este é o movimento do real e alfabetizar garis, homens e mulheres negros e negras é uma estratégia na luta contra o racismo e outras desigualdades. A presença massiva de pessoas negras em indicadores de vulnerabilidade não é coincidência, não é destino, é uma política”.