Não basta se preocupar apenas com o feminicídio, a morte pela violência não é só física, afirma delegada titular da DEAM
24/08/2023
Criadas na década de 1980, as
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher
(DEAMs) são uma conquista dos movimentos de mulheres que há muito já
reivindicavam um espaço de atendimento adequado que pudesse direcionar esforços
no combate específico de violências contra as mulheres. A criação foi fortemente
impulsionada pela ampla repercussão midiática da morte da socialite Ângela
Diniz, assassinada com tiros no rosto, aos 32 anos, pelo seu então namorado que
posteriormente foi absolvido em primeira instância com base no argumento de
legítima defesa da honra, que somente neste ano de 2023 foi julgado
inconstitucional. Desde 1985, as DEAMs se tornaram as principais políticas
públicas institucionalizadas de acolhimento às
mulheres em situação de violência.
A criação das DEAMs vem
acompanhada de um entendimento consolidado acerca da necessidade de existência
de espaços para acolhimento e encaminhamento de denúncias de violências de
gênero que levem em consideração as dinâmicas complexas que estão em torno
destes crimes. Ao longo dos anos as delegacias especializadas se consolidaram
como um espaço fundamental para o combate a estas violências, ainda assim o
número de delegacias em todo o país ainda é insuficiente e os casos seguem
aumentando. Com a Lei Maria da Penha, sobretudo as delegacias especializadas ganham contornos ainda mais de
acolhimento já que passam a funcionar em rede, na busca por um atendimento
integrado com outros
setores como saúde, educação e direitos humanos.
Em Feira de Santana,
conversamos com Clécia Vasconcelos, a delegada titular da DEAM que promove um
trabalho integrado da delegacia com outros órgãos do município para fortalecer
a rede de apoio às mulheres vítimas de violência. Desde 2013 à frente do órgão, a delegada revelou dados sobre o
atendimento diário e abordou as complexidades do enfrentamento às violências.
Para começar, é
importante destacar quais são os limites de atuação da DEAM; para isso questionamos a delegada sobre quem pode
procurar o órgão. As DEAMs são voltadas para crimes que estão enquadrados como
violência doméstica dentro da Lei Maria da Penha. Estão
previstos cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher na
Lei: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Além da
violência doméstica, as DEAMs são espaços para combate também da violência
sexual contra a mulher. Ou seja, violências contra crianças, idosas, que têm estatutos próprios, da Criança e do Idoso, devem
ser direcionadas às delegacias territoriais, a não ser, que o responsável pelo
crime esteja no âmbito doméstico que enquadre a situação no âmbito da violência
doméstica, caracterizada pela Lei Maria da Penha:
“Geralmente somos
demandados por questões que não são da nossa atribuição. Uma coisa é
competência. Competência é atribuída pelo código do processo penal. Outra coisa
é atribuição que quem determina é a delegacia geral. Então, a DEAM trabalha com
aplicação da Lei Maria da Penha e em crimes sexuais. Independente da Lei Maria
da Penha, crimes sexuais. Adolescentes, menor de idade, não é aqui na DEAM, é
na delegacia territorial, a que corresponde ao endereço da vítima. A menos que
esta adolescente, já coabite na mesma casa que o agressor”, explica.
Crescimento
dos casos de violência em Feira de Santana
A delegada enfatiza que os dados de aumento de casos de violência
confirmado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública também representam a
realidade feirense: “O número de ocorrências de violência contra a mulher tem
crescido e o que chama a atenção é que essas ocorrências têm aumentado de modo
geral, mas, principalmente, as ocorrências que se referem à violência sexual.
Há uns três anos, eu como delegada titular da DEAM posso dizer que foi o
período mais difícil, porque nós tivemos uma média de duas mulheres sendo
estupradas por semana, em Feira de Santana. Isso acontecia no estacionamento,
quando ela ia trabalhar num local menos movimentado, quando ela ia malhar. E
era o estupro cometido por pessoas que não sabíamos quem era, e uma
investigação de estupro demanda muito esforço. Hoje, estes estupros são
cometidos por pessoas que estão no ciclo dessa menina, dessa mulher. É um
colega de trabalho, é um colega de faculdade que foi num show, depois num
barzinho, só queria tomar uma cerveja, mas ali acontece o fato. Não só o estupro,
mas também o assédio sexual”, relata.
Estes crimes, segundo Clécia
Vasconcelos, foram elucidados e os criminosos estão presos. Nos dias atuais, a
diferença em relação aos casos que têm chegado à DEAM com maior frequência, é
que os sujeitos que está cometendo estes crimes sexuais, em geral, são pessoas
conhecidas da vítima.
Eficácia
da Lei Maria da Penha
Com o aumento dos
casos, é comum também o questionamento acerca da eficácia da Lei,
principalmente, em relação aos feminicídios. Neste ponto, a delegada é enfática
ao afirmar que a divulgação somente dos casos mais graves e fatais pode gerar
uma impressão errônea sobre como os aparelhos de segurança têm atuado, também
com êxito para barrar a incidência destes crimes. Apesar disso, ela descreve a
complexidade da atuação na área de violência contra a mulher:
“Quando
a gente espera que um fenômeno como a violência criminal seja combatido apenas
com a Lei, já estamos fadados ao insucesso. Principalmente, um fenômeno como
esse que a gente sabe que não é apenas criminal, é social, cultural. O sucesso
e a importância da Lei Maria da Penha é porque ela não vê somente este aspecto,
ela diz quais são os tipos de violência, ela traz a perspectiva de atuação em
rede, então, se eu não tenho uma rede harmônica e sincrônica, eu não vou
funcionar”.
Clécia Vasconcelos
destaca ainda como em Feira de Santana a atuação no combate ao feminicídio, em
grande medida, tem alcançado êxito: “O nosso problema não está no combate ao
feminicídio em termos de rede. A rede tem se mostrado eficiente para combater o
feminicídio, sim. Feira de Santana, apesar de um número tão grande de ocorrências,
não tem um número de feminicídio elevado. Nós temos a Casa Abrigo, nós temos
uma rede de proteção atuante. Então, aqui em Feira de Santana, o perfil das
mulheres vítimas de feminicídio, são mulheres que registraram a ocorrência,
pediram medida protetiva e depois cancelaram, voltaram a viver com essa pessoa
ou deram a segunda chance, enfim, mais uma vez,
ele conseguiu enganá-la. A gente não tem aqui, em Feira de Santana, uma mulher
vítima de feminicídio que você possa dizer: a rede não conseguiu chegar até
ela. Precisamos dizer também que o Estado tem o papel dele, mas essa mulher
também é protagonista. Então, quanto ao feminicídio em si, o número em Feira de
Santana não é expressivo. A rede começou a atuar e tem atuado”.
A delegada reforça
ainda como outros pontos significativos precisam ser discutidos para ampliar o
enfrentamento contra a violência, o que não pode ser resumido somente à morte
física das mulheres: “O feminicídio, essa morte física que é o auge da
violência, estamos conseguindo combater. Porque não é todo o caso de violência contra
a mulher que gera o feminicídio, mas quando eu
vejo essa mulher que não teve uma morte física, mas teve uma morte da alma, pra
mim, são casos até mais graves. Eu não tenho como mensurar se uma ameaça é
maior que um murro no olho, porque a depender dessa mulher, a partir de uma
ameaça feita ela deixa de trabalhar com medo de ser constrangida, ela deixa de
viver com medo de morrer. Neste aspecto a rede está sendo falha. Até porque a
rede não pode trabalhar sozinha sem políticas públicas específicas”, explica.
Complexidade
no atendimento
Para exemplificar a
complexidade das dinâmicas que envolvem as denúncias, a delegada relatou ainda
o caso de uma jovem de 19 anos que denunciou uma situação de assédio sexual
contra o seu patrão e foi demitida logo em
seguida: “Essa jovem que tem coragem de denunciar um assédio sexual, ela é
duplamente violentada. Ela tem o comprometimento, tem o julgamento todo até vir
à delegacia, sofreu a violência sexual e ainda é
demitida. Ela se questionou como poderia pagar a máquina de lavar da mãe que
tinha comprado, não tem como você ser indiferente a isso”. Para Clécia
Vasconcelos, que também é atuante nos movimentos sociais, enfrentar estas
demandas é um dever coletivo: “Eu, enquanto delegada de polícia, tenho que
procurar soluções. Esse é um papel de todos nós, a gente tem que se envolver.
Porque se eu ficar esperando só por políticas públicas para isso, não avança. O
que é que já procuramos? Fizemos um convênio com a associação comercial, a
partir das habilidades da qualificação, essas vítimas de assédio sexual estão
sendo encaminhadas e tendo um emprego. Então não basta se preocupar somente com
o feminicídio. E o dia-a-dia que mata também? A morte não é só física. O
problema aí na eficácia não é da Lei, é do executivo. Por isso o combate à violência contra a mulher é tão complexo, porque não
é somente uma questão policial; é uma questão
social. Soltar as amarras desta mulher é difícil”, complementa.
A Delegacia
Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM)de Feira de Santana está localizada
na Avenida Maria Quitéria nº 1870. O atendimento ocorre 24 horas por dia, todos
os dias da semana.