"Estar nesta posição é ocupar o "não lugar", é contrariar o lugar que a sociedade convencionou que as mulheres negras deveriam ocupar", afirma vice-reitora da UEFS, Evanilda de Carvalho.
25/07/2023
A reivindicação por representatividade e ocupação
de cargos de poder e decisão sempre esteve na pauta dos movimentos de mulheres
negras. Historicamente, pessoas negras são as que menos ocupam cargos de
chefia. Se para homens esta já é uma realidade excludente, para as mulheres
negras que ficam na base da pirâmide social, a estatística é ainda mais
perversa. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio
(PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em
2021, mulheres negras representam somente 2,4% dos cargos de gerência ou
diretoria. Para mulheres brancas, esse índice também é baixo, mas chega a quase
o dobro com 5,6% das ocupações. Além disso, segundo o Dieese
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos),
trabalhadoras negras receberam, em 2022, 46,3% do rendimento médio obtido por
homens brancos.
A menor
representatividade em posições de liderança reflete um quadro de subordinação
reservado às mulheres
negras na hierarquia social. De modo ampliado, a ocupação destes espaços
pode representar a realização de ações de incentivo para que mais mulheres
negras cheguem a cargos de liderança e tenhamos mudanças significativas na
estrutura. Individualmente, temos um importante fator que diz respeito a
identificação individual que vem com a representatividade que torna possível a
capacidade de sonhar e buscar alcançar também este lugar. Sobre os vieses
individuais e coletivos na luta contra as desigualdades de gênero e raça,
conversamos com a vice-Reitora da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS), Evanilda de Carvalho, enfermeira e professora do Departamento de
Saúde, que atualmente ocupa um lugar
histórico para a universidade ao gerir a Administração Central ao lado de outra
mulher, a professora Amali Mussi.
Para a professora Eva,
como é conhecida, a naturalização do lugar de subserviência imposto às mulheres
negras é o resultado de uma sociedade que projeta pessoas brancas para camadas
superiores, enquanto delega aos negros a subserviência. “A sociedade brasileira
naturalizou o lugar das mulheres negras o lugar da submissão, da subalternidade
e da obediência a ordens dos homens e mulheres brancas. Estar nesta posição é ocupar o “não
lugar”, ou seja, é estar contrariando o lugar que a sociedade convencionou que
as mulheres negras deveriam ocupar”, destaca.
Ocupação de espaços de poder e decisão
Militante de movimentos
em defesa dos direitos da população negra em várias instâncias, como o Coletivo
de Docentes Negros, Negras e Negres da UEFS, a professora reflete sobre a
importância individual e coletiva de ocupar espaços de liderança: “ Há vários
pontos que indicam a importância de estar nestes espaços, dentre eles é
importante para a autoestima de meninas e mulheres que ao se ver representada
pode aspirar novos espaços para si; para a sociedade em geral porque enriquece
a relação entre os diferentes seres humanos que compõe o quadro de gestão, para
o coletivo porque tem uma porta voz para que suas demandas/necessidades e
interesses enquanto corpo social (quer
seja de estudante, trabalhadora ou docente) seja colocado em pauta sob a
perspectiva de um sujeito cuja experiência se aproxime da sua”, explica.
Os desafios que vêm com
a representatividade também são colocados, afinal, mulheres negras são mais
cobradas quando chegam a determinados cargos, mesmo que sua qualificação seja
superior aos demais que estão ou já estiveram na mesma posição: Estar em um
“não lugar” debruça-se sobre nós exigências, muito mais do que competências
técnicas, cientificas, gerenciais, etc do que as que se espera das mulheres
brancas, por exemplo. Também recai sobre nós, mulheres negras, a correção das
injustiças criadas pelo racismo estrutural. E por ser um lugar de poder, há
tensões, conflitos e enfrentamento dos problemas estruturais que herdamos de
nossa origem colonialista e escravagista, que com certeza frustra e incomoda
àqueles e aquelas que se acostumaram a decidir os rumos de todos e todas sem
considerar nossas existências”.
A seu favor, a
professora Eva destaca a importância da sua trajetória para contribuir no
desenvolvimento de seu trabalho, levando em consideração as necessidades
coletivas: “Quando estou
participando e decidindo em conjunto com nossa reitora e equipe, não é a voz
individual que evoco, mas a voz do grupo social que represento. Sou filha de
trabalhadores informais, e desde infância trabalhei, entrei na universidade
como aluna na década de 80. Desde lá tenho passado por muitas experiências que
me marcaram no lugar de mulher negra, pois o racismo à brasileira sempre tratou
de ressaltar que para ter minha voz considerada eu deveria desenvolver variadas
estratégias”, explica.
Representatividade e ações efetivas
Além disso, ela destaca a importância da
representatividade ir muito além de apenas a ocupação de determinado lugar. É
necessário que sejam realizadas ações efetivas, do contrário, o espaço se torna
meramente figurativo: “Meu status de
mulher negra me convoca a todo instante a defender com argumentos assentados em
princípios e valores que me ajudam a tornar a pauta da inclusão algo objetivo e
não apenas uma narrativa politicamente correta para agradar a audiência. Tenho
clareza de que não posso sozinha romper a lógica alimentada pela estrutura,
apenas por estar lá, seria pretensiosa e imatura até, mas minha utopia é
inspirar outras de minhas iguais a somarem-se a mim nos departamentos, câmaras
e conselhos superiores para que possamos provocar essa ruptura.
Estou nestes espaços (como em tantos outros que já
estive) para defender uma causa, e isso dá sentido ao que estou realizando
através do trabalho que desenvolvo na universidade pública. Sonho com um mundo
menos injusto e acredito que estou dando minha contribuição para mostrar o
valor e a competência das mulheres negras para gerir a vida e transformar as
instituições e a sociedade. Como dizem por ai “coloquei meu corpo para jogo”
contra o racismo estrutural”.
Apesar de uma mudança gradual no quadro da
sociedade onde vemos o aumento gradativo da participação feminina negra, os
desafios impostos para ocupação dos espaços de poder e liderança ainda são
múltiplos até que possamos visualizar um cenário em que a desigualdades tenham
sido substancialmente reduzidas, destaca a professora Eva: “Veja bem, o
contexto histórico e político nos dá abertura, e precisamos nos apoiar para
aproveitar a onda democrática que trouxe de volta a esperança. Entretanto, nada
pelo que lutamos foi ainda conquistado, muito pelo contrário, muitos direitos
foram perdidos e outros tantos ameaçados, como por exemplo os direitos sexuais
e reprodutivos. A ausência do Estado reverberou em mais fome, desemprego,
violência e desassistência. Ou seja, ampliou-se a vulnerabilidade da população
negra que nunca alcançou a reparação pelas torturas e descasos que sofreu ao
longo da história”, reflete.
No contexto geral, um dos desafios destacados pela
vice-Reitora para minimizar as desigualdades diz respeito ao combate ao
machismo. [É] fazer os homens entender que durante séculos eles estiveram no
comando e o mundo que nos entregou não é o que merecemos. Nós mulheres temos um
modo mais holístico de pensar a existência, e acreditamos que podemos tornar a
vida melhor”. Já no contexto da UEFS, os desafios destacados por ela, de modo
geral, são: “Equiparar o número de docentes negros e negras ao percentual de
população negra do Estado da Bahia para que em futuro breve possamos assumir os
departamentos, colegiados, câmaras, coordenações, pró-reitorias e ascender a
todos os espaços de comando. Fazer a revolução é o mais complexo, delicado e
necessário desafio a ser superado. E não menos importante, mas de ordem micro,
nas relações entre os pares é estabelecer trocas pedagógicas suficientes para
mostrar a todos e todas que inclusão está para além de ter um lugar, mas de ter
sua voz ouvida e considerada. E não confundir a minha voz como reinvindicação
pessoal, mas de um grupo social que sempre esteve à margem nas decisões que
impactam sobre suas vidas”, reflete a professora Eva que enfatiza a importância
ainda do autocuidado para que no âmbito pessoal também possa realizar seus
anseios de forma saudável: “Desenvolver sabedoria para não cair nas armadilhas
do poder pelo poder, manter a saúde física e mental para seguir lutando, cuidar
do tempo para amar e ser amada para não esquecer quem sou”, conclui.