A universidade é mais um instrumento que devemos utilizar para reescrever a história do povo preto no Brasil, afirma Ivannide Santa Bárbara
16/08/2022
No
último dia 09 de agosto, em sessão do Conselho Superior (Consu) da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), foi outorgado o título honorífico de
Doutora Honoris Causa para Ivannide Rodrigues Santa Bárbara. A data
da solenidade ainda não foi defenida pela universidade. Como já mencionado em
nota de apoio da Adufs à concessão do título, nada mais justo e reparador do
ponto de vista histórico que a concessão desta honraria para uma mulher negra, mãe,
militante incansável na defesa dos movimentos negros e da classe trabalhadora.
Forjada em lutas, desde muito cedo, Ivannide Santa Bárbara tem mostrado que a
sua defesa pelas minorias é uma questão de
sobrevivência da qual não poderia se furtar ao enfrentamento.
Por
unanimidade, o título é histórico e foi o primeiro concedido pela UEFS a uma pessoa
negra e a uma mulher. A história de Ivannide Santa Bárbara se confunde com a
história de lutas de Feira de Santana e da UEFS. Em 1981, aprovada no
vestibular da UEFS no curso de Ciências Econômicas, amargou as dificuldades da
falta de políticas de permanência estudantil e precisou abandonar os estudos.
Já nessa época, contribuía significativamente na construção de movimentos sociais
organizados e ajudou a formar as bases para a fundação da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e Partido dos Trabalhadores (PT). Concorreu às eleições municipais em
algumas ocasiões e foi uma das fundadoras da Frente Negra Feirense (Frenefe),
ainda em 1988. Também neste ano, se filiou ao Movimento Negro Unificado (MNU)
onde viria a ocupar cargos diretivos nas instâncias municipais, estaduais e federais.
Mais tarde, ajudou na consolidação da implementação das políticas de ações afirmativas
na universidade que não pôde concluir por falta de assistência. Este fato foi
lembrado por ela, quando relatou sobre a importância da concessão da titulação
para a sua trajetória:
“Sinto-me
honrada ao receber esse título por uma universidade que, de fato, apesar de ter
adentrado a ela, não consegui sair de lá diplomada, porque aquela universidade
não reunia condições para receber mulheres como eu: pobres negras, mãe de família, precisando
trabalhar. Então, naquele momento, eu digo que fui expulsa da universidade por
falta de acolhimento da instituição em si que não se interessava em reunir as
condições para acolher estudantes com características iguais as minhas. Mas, me
sinto honrada, hoje, tantos anos depois, com a generosidade de professores,
professoras, reitor, em me conceder esse título”, afirma Ivannide Santa Bárbara
que permanece engajada na luta pela ampliação da permanência qualificada para
negros e negras:
“Sem
dúvida, a luta pela política de ações afirmativas da UEFS beneficiou, aliás,
tem beneficiado e, com certeza, lutamos para que venha beneficiar muito mais,
com melhores condições, as próximas gerações de jovens negros e negras. A
universidade nos deve ainda a questão do acompanhamento desses e dessas jovens
que ali acessam também pela política de ações afirmativas. Precisamos,
inclusive, ampliar essa política para outros níveis para professores e
professoras negras, indígenas, lésbicas, para que, de fato, você tenha uma
diversidade ali representada. Então, nossa luta continua, não parou lá atrás,
continua pela ampliação dessa política”, explica.
Educadora
nata, através das formações no MNU, Ivannide Santa Bárbara se transformou em
inspiração para centenas de jovens que ainda em processo de construção
identitária tiveram contato com discussões
fundamentais sobre raça, racismo e a importância de se somar na luta antirracista.
Auxiliar na trajetória de jovens negros e negras continua sendo parte de seus
enfrentamentos que ela coloca como desafio a ser enfrentado para a construção
de uma identidade fortalecida diante das armadilhas do racismo:
“É
um desafio fazer com que as nossas pretas e pretos adolescentes que sonham
acessar as Universidades façam isso com os dois pés no chão. Que façam isso com muita consciência, sem a
ilusão de que esse acesso os libertará para qualquer espaço, porque isso não é
verdade. Que saibam que ao acessar as políticas de ação afirmativa, estão
usufruindo de um movimento que foi e que vem sendo construído ao longo dos
séculos por muitos e muitas de nosso povo africano na diáspora, portanto, eles
e elas, ainda estarão com a responsabilidade de abrir novos caminhos. O racismo
não vai acabar na hora que a gente pisar na universidade como estudante ou como
professor. Esse, do meu ponto de vista, é um enorme desafio de conscientizar
nosso povo. A universidade é só mais um instrumento; um instrumento,
principalmente, que a gente deve utilizar para reescrever a história do povo preto
do Brasil, que não precisa e não deve ser a história de um povo escravizado,
mas de um povo que tem uma vida anterior, toda uma cultura que lhe foi roubada,
usurpada e que a gente precisa falar disso, falar de nós. Nós, falando de nós,
com orgulho, com firmeza, com convicção de quem somos”, enfatiza.
Apesar
do amplo reconhecimento da sua contribuição por parte dos movimentos sociais e
políticos, a presença do racismo continua sendo uma constante na sua vida, seja
por ação direta ou indireta: “O fato de fazer parte de movimento negro não nos
faz menos discriminada, de forma alguma, nos faz mais amada pelos nossos, mais reconhecida pelos nossos, pelos de
esquerda, pelas mulheres e homens de esquerda que lutam por uma sociedade de
iguais, isso sim. É gratificante, mas as escolhas que a gente faz no mundo nos
leva por caminhos que só encrespam. Por exemplo, o fato de ser esquerda, com
consciência e orgulho de ser de esquerda, nos faz muito mais antipatizada,
rejeitada, agredida, violentada, até porque a nossa compreensão de violência se
diferencia. Então, quando você não tem tanta consciência, você vê um negro ou
uma negra ali sendo discriminado, violentado ou violentada, você passa ao largo
como se aquilo não fosse com você, mas quando você tem consciência de qual é o
seu lugar e de que lado você está, você sabe que qualquer negro, qualquer negra sendo discriminado ou
discriminado, qualquer trabalhador ou trabalhadora sendo violentada, é você
também que está sendo violentado ou violentada,
discriminado ou discriminada. Quando se tem lado, você sabe que o que
fazem ali fazem também com você a qualquer momento. Então não diminui o
preconceito, aumenta a responsabilidade, o compromisso e, como eu disse, a
fraternidade entre nós que estamos do mesmo lado”, enfatiza
Ivannide
Santa Bárbara, com nome e sobrenome para que o racismo não lhe dê o nome que quiser
– parafraseando Lélia Gonzalez, outra grande referência da luta que certamente inspirou
seus caminhos – é o reflexo das lutas contínuas apesar do cotidiano pobre, violento
e letal a que é submetida a população negra, em especial as mulheres, num país racista
e misógino como o Brasil. Ainda que tenha acontecido tardiamente, a concessão do
título Honoris Causa para Ivannide Santa Bárbara é uma reparação histórica que
não pode e não deve se encerrar em seu nome, permaneceremos na luta pela
ampliação da representatividade na universidade em todas as suas instâncias.