Dívida pública amplia as desigualdades sociais no país

01/03/2016

O sistema da dívida é responsável por um crescente e contínuo processo de subtração de recursos públicos nacionais, que são direcionados ao setor financeiro privado e impedem a garantia dos direitos sociais básicos à população. Em entrevista concedida à Adufs, Filipe Leão, diretor do Sindicato Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle (Unacon) da Controladoria Geral da União (CGU) e membro da Auditoria Cidadã da Dívida, chama a atenção para as implicações sociais da dívida, já que consome 47% do orçamento anual do país, defende a necessidade de uma auditoria para que se verifique a razão da crescente cobrança e fala sobre a autonomia da CGU para controle das ações executadas pelos agentes públicos.

Adufs – O que é a dívida pública?
 Filipe Leão - Do ponto de vista estritamente contábil, dívida pública é um conjunto de obrigações - um débito - que os governos precisam honrar junto a fornecedores, prestadores de serviços, trabalhadores ou a quem tomou empréstimo. Pressupõe, portanto, que em algum momento, o governo tornou-se dono de algum bem, recebeu serviços e prometeu pagá-los ou devolvê-los numa data futura. Aí você deve pensar: “mas, se há uma dívida pública, o governo tem de pagar”. Esse é o ponto chave. A grande discussão da dívida pública no Brasil é que ela não tem sido gerada como contrapartida efetiva em bens ou serviços, com entrega efetiva de dinheiro, mas por mecanismos e decisões políticas tomadas em função do lobby do setor financeiro, de sistemas de capitalização envolvendo juros sobre juros, descontroles nos contratos antigos, taxas extorsivas, dentre outros aspectos econômicos.

 Adufs - Qual a avaliação do senhor sobre a situação da dívida pública brasileira?
 Filipe Leão – No dia 31 de dezembro do ano passado, o principal sistema contábil do governo federal registrava um débito em torno de R$ 3,3 trilhões. Se somados outros registros não totalmente transparentes - o governo federal não soma, por exemplo, valores onde figura como fiador/avalista de empréstimos internacionais de empresas privadas ou mesmo a parcela de títulos que estão nas mãos do Banco Central - os valores ultrapassam a casa de R$ 5 trilhões. Esses números são extremamente altos e o governo acaba tendo que destinar 47% de seu orçamento anual para pagar juros e parte desse valor em amortizações, comprimindo todo o conjunto das políticas públicas anuais. Nesse modelo, há um privilégio para pagar valores (ainda não auditados), em detrimento de investimentos no sistema único de saúde, na oferta de educação pública gratuita e de qualidade, na geração e manutenção de obras públicas, transporte, moradia, dentre outros serviços sociais. Por conta da prioridade em pagar ao setor financeiro, os lucros dos bancos, fundos e corretoras batem recordes, ano a ano. Agora mesmo, há uma crise econômica gigantesca, desemprego, recessão, indústrias e empresas fechando, mas o setor bancário tem fechado seus balanços com retornos astronômicos sobre o patrimônio líquido. É um pequeno grupo que concentra poder e riqueza, em detrimento de todo o conjunto da população. O sistema da dívida contribui com este processo.

Adufs – Há desonestidade no debate sobre as finanças públicas do país.
Filipe Leão – Sim. Os analistas econômicos entrevistados nos grandes veículos de comunicação do país são pessoas ligadas ao setor financeiro. Querem dar o enfoque de que a dívida é justa. Há um debate para omitir quem são os verdadeiros ganhadores da divisão desse bolo. Não existe crítica ao modelo econômico no qual o país está assentado e ao conjunto de normas e regras que foram aprovadas pela Constituição e pelo Congresso Nacional para sustentar um sistema que é injusto. É necessário debater a taxa cobrada por bancos, fundos e corretoras quando financiam o país e a rolagem da dívida pública e o próprio sistema.

Adufs – Por que é difícil pôr em prática a auditoria da dívida ?
Filipe Leão - Até hoje faltou vontade política dos governantes eleitos, pois uma auditoria poderia identificar e expor, publicamente, quem ganha e quem perde com toda essa situação. Nessa conta, os políticos tradicionais pensam e agem assim: “se constranger meus financiadores de campanha (bancos), em qual situação estarei na próxima eleição?”. Para quem tem esse ponto de vista, a auditoria será difícil porque precisa confrontar toda a lógica política, econômica e social instalada. Contudo, é uma necessidade urgente e não faltam pessoas dispostas a fazê-la e enfrentá-la. Cito a companheira Maria Lúcia Fattorelli, organizadora do movimento auditoria cidadã da dívida. Ela participou da auditoria da dívida no Equador, onde identificou uma série de irregularidades nos contratos de empréstimos externos (muitos nem existiam!). De posse do relatório, o governo Rafael Correia conseguiu reduzir obrigações registradas nos sistemas contábeis e ampliar os gastos sociais.

 Adufs - Qual a relação entre a dívida pública e o ajuste fiscal aplicado atualmente pelo governo?
Filipe Leão – Imagine a situação de uma mãe que num determinado momento familiar teve que se socorrer com R$2 mil na mão de um agiota que cobra 15% de juros ao mês. No início do mês seguinte, para manter o valor sem acréscimo, ela terá de desembolsar, só de juros, 300 reais. Se ela pagar 300 reais de juros ou ainda tentar amortizar uma parte do valor original do empréstimo, pode ser que falte dinheiro para comprar pão, remédio ou a conta de telefone de casa. De forma didática, o ajuste fiscal do governo é a compressão do pão, do remédio ou de outros gastos sociais destinados aos brasileiros para pagar a dívida com o sistema financeiro. E com alguns agravantes. Em primeiro lugar, não estamos certos se o governo deve realmente o valor informado no início do ano/mês ao sistema financeiro, daí a necessidade de uma auditoria (imagine se identificássemos que o valor é menor!). Isso é muito relevante, afinal, do ponto de vista legal, juros só devem incidir sobre valores realmente devidos. Se a dívida for menor, consequentemente, os gastos com juros seriam menores e sobraria dinheiro para comprar mais pães e remédios. Segundo, ao contrário da mãe que fica refém da taxa de 15% cobrada pelo agiota, o governo pode influenciar o valor das taxas cobradas por seus emprestadores ou mesmo defini-la por meio de ações da política econômica. Contudo, o que temos visto no Brasil é uma taxa básica e oficial fixada pelo Banco Central (operador da política monetária) e mantida em patamares altíssimos, prejudicando toda a nação. Ou seja, o sistema da dívida, os que ganham com seus privilégios não querem questionar se valores registrados são devidos ou discutir o impacto das taxas de juros e as decisões das políticas econômicas – querem que o governo aplique cegamente o ajuste fiscal ao povo.

Adufs - Denúncias sobre conluios nas privatizações e escândalos nas estatais permeiam diversos governos. Até que ponto a CGU tem autonomia para fiscalizar os recursos públicos?
Filipe Leão – A CGU tem a competência de investigar e auditar todo e qualquer recurso público federal. O governo Dilma foi ruim para a CGU, pois asfixiou o órgão e diminuiu o orçamento para fiscalizações e auditorias, o que reduziu diversas atividades. Sem fiscalização, as estatais, por exemplo, ficaram desprotegidas, gerando situações como a ocorrida na Petrobrás. Essa estatal, assim como a Eletrobrás, geram recursos volumosos, mas com controle bastante frágil. Alia-se isso ao processo de apadrinhamento e composição dessas diretorias por indicações políticas, causando toda uma situação que favorece a corrupção.

Adufs - O fim da CGU como ministério é uma das propostas que está em discussão na reforma administrativo do governo. Se ficar subordinada à Casa Civil, como o governo propõe, haverá perda da independência funcional do órgão? Qual avaliação política e técnica o senhor faz dessa proposta?
Filipe Leão – A possível perda do caráter ministerial da CGU seria um desastre. Somos um órgão de controle dentro do Poder Executivo Federal que fiscaliza outros ministérios. Tem de haver horizontalidade do poder. Um possível rebaixamento da CGU prejudicaria a fiscalização dos recursos, a implementação e executoriedade das recomendações. Estamos mobilizados e alertando o governo para que não cometa esse desatino, pois seria uma das piores decisões contra o combate à corrupção. Temos o apoio de várias categorias de trabalhadores, entidades e movimentos sociais.

Adufs – Enquanto sindicalista, qual perspectiva aponta para os trabalhadores, entidades e movimentos sociais, frente ao projeto do governo de cerceamento de direitos e de sucateamento do setor público?
Filipe Leão - Resistir, embora a conjuntura sempre se apresente difícil e complexa. A história da classe trabalhadora é de resistência. Se analisarmos que há 200 anos, o trabalho na fábrica durava 18 horas e, hoje, dura oito, veremos que é resultado da luta por uma sociedade mais justa e democrática. Aos trabalhadores, cabe manter a unidade, as mobilizações, a organização, a construção da pauta de reivindicações. Tenho refletido que tornar a luta dos trabalhadores em sinônimo da luta da sociedade é um dos grandes desafios de todo e qualquer sindicalista para enfrentar o cerceamento de direitos.

Filipe Leão Marques é diretor de finanças do Sindicato Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (Unacon), membro da Controladoria Geral da União (Analista de finanças e controle) desde 2004, integrante da Auditoria Cidadã da Dívida e vice-presidente do Instituto de Fiscalização e Controle (IFC) - entidade não governamental com atuação no controle social. Entre 2008 e 2010, coordenou o Núcleo de Ações de Prevenção - NAP. 

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